As esquinas da minha cidade
por Jorge C Ferreira
Ancestrais são as esquinas da minha cidade. As esquinas onde tanta coisa se passou. As esquinas das conversas da minha vida. Horas e horas de estórias por escrever. Só homens e cigarros. Vozes que ecoavam no silêncio que a noite escrevia. Por vezes a lua. Por vezes até frio. Um fumo branco a soltar-se das falas.
Tudo começava quando a noite já ia alta e já tinha fechado o restaurante onde tínhamos ceado. Primeiro as luzes fechavam e abriam três vezes. Depois era tempo de pagar e sair. Tudo tinha começado há muitos anos. O bife ia fazendo o seu caminho entre diálogos imprevistos. As esquinas eram escolhidas. Um pouco como as prostitutas o faziam num outro lado da mesma cidade. A mesma cidade e mil modos de viver, de sobreviver, de estar, de desabar.
Os prédios de gaveto. Prédios de onde se viam mais vidas. De onde se podiam espreitar outros mundos. Onde se ouviam as estórias mais inverosímeis. Tanto álcool derramado em cada frase. Num prédio de gaveto nunca se deve dormir nos quartos virados para a rua. Aí devem ser as salas de todos os ouvidores. Apesar de tudo, por vezes, ouvia-se um grito vindo de um lugar indistinto: «pouco barulho.» Havia que baixar o tom da voz e das gargalhadas.
Nas noites mais agrestes os ossos começavam a queixar-se. Apesar dos agasalhos a humidade entranhava-se no corpo. As horas iam passando e a conversa continuava. Tudo vinha à conversa. De vez em quando passava o guarda-nocturno a lembrar que já era tarde. Depressa ia continuar o seu giro. Esperar que alguém lhe batesse as palmas para ir abrir uma porta e receber uma gorjeta. Nós éramos esquecidos.
Havia conversas que quase se sussurravam. Assuntos que iam contra a moral instituída. Contra aquela triste tríade: Deus, Pátria, Família, de triste memória. Nunca sabíamos o que ouviam aquelas paredes que nos guardavam da noite. Normalmente sabíamos quem ali morava. Mas, naquele tempo, temíamos ouvidos indiscretos. De vez em quando passava o “creme nívea”. Tentávamos passar despercebidos. A vida a tramar vidas.
No outro lado da cidade as prostitutas continuavam a guardar as suas esquinas. Havia sempre por perto uma pensão de águas correntes quentes e frias. Coisa que era anunciada com espavento. Outras vezes apenas um quarto com bidé, lavatório e um jarro de esmalte cheio de água. Os chulos guardavam o negócio. Espiavam o “trottoir” da sua “garina”. Hoje tudo tem outros nomes. Continua a haver, no entanto, quem faça a sua vida na rua. Os chulos são empresários da noite. Modos de viver que se perpetuam. Há quem peça uma acompanhante de luxo para um condomínio de nome conhecido.
Começava a chegar a hora de regressar a casa. Tudo antes que começasse a clarear e aparecessem os homens do leite, do pão e os ardinas. Tudo, naquele tempo era deixado à porta. Pela manhã abria-se a porta e caíam as notícias dentro de casa. O pão do pequeno-almoço estalava. Os fornos eram de lenha. O leite parecia acabado de ordenhar. A tinta dos jornais sujava as mãos.
Era tempo de dormir num instante. Depois seria um outro dia. Um banho e correr em busca do dinheiro para pagar as coisas. Sim, para mim, o trabalho sempre foi isso. O meio de ter dinheiro para pagar o que gostava. Viver em casa da família ajudava muito. Ter sempre pão na mesa, um luxo. Os cozinhados da minha querida Avó sempre pronta a satisfazer-me um capricho.
Alguns dos companheiros daquelas esquinas já cá não estão. Quando calha lá passar vem-me sempre uma lágrima aos olhos. Um pingo para acrescentar à foz do rio do nosso viver. Ali nos juntamos muitos.
«Sabes, o que escreveste é bonito. Mas essa tua vida devia dar cabo da tua Avó.»
Fala de Isaurinda.
«Nisso és capaz de ter razão. Mas trabalhava desde muito novo. Eram outros tempos.»
Respondo.
«Sim. Que tempos! Sempre foste muito diferente. Haja quem te ature.»
De novo Isaurinda e vai, a benzer-se com a mão direita.
Jorge C Ferreira Novembro/2021(324)
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Por tudo isso que escreves me deixo enlevar ao encanto das estórias. Nada que eu tenha passado, mas escrito com muitas memórias e lembranças infindáveis levam-me a um postal ilustrado da Lisboa antiga com as suas avenidas, as suas colinas…
Tempos de receios e corajosos medos, tempos que não vivi mas delicio-me a ler-te neste espaço com dia marcado. Abraço meu amigo!
Obrigado Cecília. Que bom não faltares a este nosso encontro. És sempre uma voz que aprecio muito. Somos a soma de tudo o que vivemos. O que eu Amo a minha Cidade. Abraço enorme.
Maravilhosa crónica. Uma viagem no tempo, tão longínquo e tão perto. A vida na grande cidade. Aventuras de amigos. Conversas cuidadosas, não fosse as paredes terem ouvidos.
O regresso a casa, quando a cidade acordava.
Os mimos da avó. Que ternura.
Belas memórias, que deixam uma lágrima ao canto do olho.
É bom saborear tão boas memórias.
Obrigada Amigo.Grande abraço.
Obrigado Eulália. Que bem comenta o que escrevi. É sempre bom saborear as memórias sem grandes nostalgias. Grato pela sua presença. Abraço Amigo
Uma ” Crónica ” que é Vida. De muitas experiências, vividas, ouvidas, olhadas, ficaste com o que mais sentiste. Porque tu VIVES a VIDA, quase sempre, desde que esteja ao teu alcance. Das experiências, a tua Imaginação não se esgota. Nasceste para viver estórias e histórias e as contares. Gosto do que contas e da forma como o fazes. Vivi mais uma vida. Beijinhos amigos. Iv.
Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. Tu sabes tão bem ler-me. Nem necessito de escrever muito. Tu já conhecias muitas vidas iguais a estas. Que caminho o nosso. Abraço imenso
Contigo faço sempre viagens. Viagens ao que vivi e viagens do que não vivi mas imagino
Deixo o meu abraço
Obrigado Eulália. Que bom ter a tua companhia neztas viagens. Que maravilha ter-te neste nosso espaço. Mil vezes grato. Abraço enorme
Como tão bem recorda, o tempo da sua juventude. Foi assim, era assim como diz, sem perder a noção da responsabilidade. Ao outro dia o trabalho esperava-o.
O apoio da família sempre lembrado, sem esquecer os mimos da avó.
A noite sempre foi apetecida, com seus encantos e perigos.
Á noite falar alto, não convinha, os “escutas”também gostavam da noite. E “ as paredes tinham.ouvidos.” A noite continua a atrair a juventude de hoje, mas os perigos são muitos e graves. É diferente, mas não para melhor.
Felizes aqueles que têm a noção, que do trabalho é que vem tudo.
Sempre maravilhosa a sua escrita, tal como a sua narrativa, querido escritor. Gostei muito, “ Das esquinas da minha Cidade.”
Grata sempre. Abraço imenso.
Obrigado Maria Luiza. Sim outros tempos, outras estórias. Como gosto que esteja sempre presente nesta aventura de me reinventar cada semana. Tão importante a sua presença. Abraço grande
Que cenas contas! Ali onde morei quase trinta anos, avistava das minhas janelas os muros do Técnico.
A fila dos carros a dar a volta até que escolhessem a parceira que lhes agradava, o carro a abrandar, a discussão do preço e não sei que mais, tudo isso se assistia.
Os proxenetas vigiavam ao longe o negócio e travavam conhecimento com os moradores da zona, com as crianças que saiam à rua com o cão. Era um cá tu lá.
Tudo isto nesta Lisboa que eu amo num passado recente.
Não sei como vai aquele arraial por ali!
Obrigado Fernanda. Vizinha da minha cidade grande. Testemunha ocular de muitas voltas da vida. Era como dizes. Como te agradeço as tuas palavras. Abraço gigante
Jorge, meu amigo, que esquinas?
Que esquinas eram essas, circulares, que dobravam a noite e onde se palestrava até às tantas, com redobrado cuidado, não fosse o diabo tecê-las?
Que esquinas eram essas, paralelas, de copos, fumo, gracejos, as últimas, as outras, as do estado das coisas e das coisas do estado?
Que esquinas eram essas, perpendiculares, que deixavam nomes no ar? Zeca, Godinho, Branco, Ferré ou Brel?
Que esquinas eram essas, invisíveis, onde circulavam amarrotados panfletos, recortes de jornais clandestinos, poemas e trovas de um tempo novo, escondidos nos bolsos das calças coçadas, à boca de sino?
Que esquinas eram essas, Jorge?
Das mulheres de vida difícil e seus proxenetas? De jovens que compravam sonhos, a custo zero, depois de dias de trabalho para a rotina dos dias?
Daqueles outros que arrecadavam no peito uma vontade gritante do país livre? Livre.
Que esquinas eram essas, Jorge?
Tu que as viveste, sonhaste, idealizaste, defendeste e almejaste?
Conta-me tu!
Tu que, como ninguém, as sabes contar!!!
Obrigado Mena. Que maravilhoso grito à Liberdade é o teu texto. Tão bom o que escreveste. Muitos sonhos morreram em algumas esquinas. Mais uma vez obrigado. Abraço forte
Uma narrativa de memórias cirúrgicas que incorporam a identidade do cronista. Vivências que se recordam como pedaços dele e,simultaneamente, como reconstruto da sua subjetividade. Um passado vivido,de certo modo,na clandestinidade, e na busca pelo sentido e pela justiça. Uma ancestralidade que continua em si,ainda que de forma diferente. Outro tempo,mas também outra maturidade (esta construída,iniciada,creio nesses tempos). Agora,não sei se posso dizer plena,mas mais consistente. E dela e do ser em que se transformou transborda,pelas palavras, esse passado,mas também um futuro (que naquele se alicerça) de voz activa e persistente pelos valores mais nobres do ser humano. Obrigada por os desvelar numa escrita,sempre poética.
Obrigado Isabel. Que bom ler-me assim. Escrevemos para sermos lidos e interpretados de diferentes modos conforme a experiência de vida de cada um. Os seus comentários são sempre importantes. Gosto muito de a ver neste espaço. Abraço Amigo
Obrigada! Muito gentil. Abraço
Nasci em Lisboa mas, com dias, fui morar para Algés, onde continuo a viver embora numa outra casa. Mas a partir dos meus 16/17anos, quando fui estudar para um colégio em Lisboa, passei a conhecer um outro lado da cidade e a encantar-me com ela. Embora não tenha a vivência intensa e diária que tão bem descreves, nem conheça tantas esquinas como tu, a tua crónica veio despertar em mim a paixão que tenho por Lisboa.
Sempre que regresso de uma viagem, e por lugares mais belos que tenha visitado, encontro-a cada vez mais bela. O Tejo encanta-me, as cores fascinam-me e a Luz é única!
Obrigada pela escrita que veio reavivar em mim o início da paixão que sinto pela cidade onde nasci.
Obrigado Maria. Como falas da minha Amada Cidade. Cidade que também é tua. Cidade da luz e do azul do rio grande. É na verdade uma cidade pela qual nos perdemos e entregamos. Tão bom estares aqui. Abraço forte
Sabes Jorge, é na tua diferença que nos identificamos. Que gostamos da tua escrita. Que gostamos de ti. E gostamos da tua cidade. Das suas esquinas, esses locais repletos de densidades e intensidades que lhe dão vida, forma e nos fascina.
Para ti :
“Agarro a madrugada
como se fosse uma criança
Uma roseira entrelaçada
Uma videira de esperança”
Com ternura
Cristina
Obrigado Cristina. Tão belo comentário. Tanta entrega. Prendas que não mereço. Tão bom ler isto. Abraço do tamanho do mundo.
Retribuo o abraço. Igual.